Ei você, por aqui de novo... Auraryus não está, o que é, de fato, muito estranho, pois já fazem quase duas estações que sumiu. O prazo que o Contador deu expira em dois dias e nem sinal dele por aqui... Que dó queimar ou vender esse lugar... eu até moraria aqui, se não tivesse que me mudar com tanta frequência. Por quê? Por que sou solícito o suficiente para atender as conveniências das autoridades e guardas locais. Apesar disso, até hoje não tive nenhum delicado pedido de licença deste lugar, então, arrisco ficar mais um pouco, se isso continuar sendo pouco risco.
É... de qualquer jeito, já vi que você gosta do lugar, então, ao menos pode matar a fome de estar aqui: não me incomodo com companhia enquanto esta não se incomodar com a minha. Já a fome de comida, posso improvisar algo lá na cozinha; nunca fui um nato cozinheiro, mas também nunca morri de fome na minha vida de viagens solitárias. Deve ter algo suficiente na despensa, apesar da escassez dos alimentos, que dê pra hoje, pelo menos.
Tá tudo muito empoeirado, mas bate a poeira da cadeira aí, se quiser, fica em pé, lustre o assento com sua... o quê? Sim, era um rato indo pra cozinha, mas tudo bem, ele vai sair de lá meio frustrado quando ver os cogumelos e as teias de aranha no queijo... dou um jeito depois, se ele insistir na excursão da casa.
Beber? Se os outros ratos, que se mudaram daqui ontem, tiverem deixado um pouco pra mim quando eu pedi, posso compartilhar com você, sem problem... não? É você quem sabe, cliente.
Enfim, tá meio frio e pelo menos lenha pra lareira tem, ainda que vai dar uma certa inveja do fogo matando sua fome. De qualquer jeito, enquanto ele mata sua fome de lenha, matamos nossa fome de calor e matamos o frio com sua fome de nos deixar gelados... Já notou como a fome é algo que alavanca o movimento do que vive? Às vezes é bem difícil dizer se ela é feita de vontade, de necessidade, ou das duas coisas – digo, há fomes e fomes neste mundo, e, é claro, existem todas essas combinações, mas definirmos nossas próprias fomes dentro dos três contextos não é simples, apesar de que dar um nome à fome nos é muito necessário, às vezes. Em outras palavras, existe uma fome no ser humano de dar nome às fomes... esquisito, não é? Esse era um mote que ouvi muito.
Tudo se resume nas seguintes questões: Sabemos o que queremos? Sabemos de que precisamos? Queremos mesmo? Precisamos mesmo? Ou, na verdade, queremos e precisamos? Muitos querem precisar... Outros precisam querer... O ser pensante pode se induzir a querer querer. Ou autosugestionar a precisão de precisar. Quer mais complexidade: o que a humanidade quer mesmo, acima de tudo, é querer querer e precisar; e, para os mais extremistas, pior – o homem está fadado a precisar de precisar e querer, não importa o quê, desde que consiga seguir isso...
Vê? Tudo isso pode ser a fome. Essa fome de ter fome... calma, calma, não é tão difícil assim de compreender! É só o seguinte: a fome é o que alimenta o homem, não a comida. Por exemplo, Auraryus, em sua fome de continuar seus negócios por essas bandas, deixou sua boa taverna nas mãos de um forag..., aliás, de um companheiro das antigas que nem conhecia muito bem... e o que o moveu? Isso, a fome! No final, a vida é uma grande cadeia circular de fomes tecidas umas às outras. Auraryus teve fome de averiguar a escassez de alimentos para poder matar a fome de seus clientes, que por sua vez, com seus pagamentos, matariam sua própria fome necessária para ele ter outras fomes na vida e correr atrás de seus devidos saciamentos. Você, por exemplo, já deve estar com fomes diversas: de sair daqui, de comer, de parar de ouvir o papo estranho de um sujeito mais estranho ainda... então, veja bem, se eu não te servir daqui a pouco, sua fome vai ser o que vai te mover para fora daqui para que você possa buscar (o querer buscar já é outra fome) outra maneira de saciá-la, porém, se eu te impedisse, você teria fome de me agredir ou se livrar de mim à força, porém, se você tentasse, eu estaria armado com esse par bonito de adagas que estou, aí você teria fome de pedir peloamordosdeuses que eu não te machucasse e fugir, ou, se você estivesse armado, hmmm, sei que não está, tentar a sorte, porém... ei, espera, aonde você está indo? Não corra tanto, você pode cair, isso aqui tá muito bagunçado! ESTAREI POR AQUI POR MAIS UM TEMPO ATÉ EU NÃO ESTAR MAIS VIU! SE QUISER VOLTAR! Poxa... não queria assustá-lo... Bem, fazer o quê...? Afinal, tenho que matar uma das minhas fomes... Será que o rato ainda está na cozinha?
Pulo-no-escuro, o Salteador